O livro examina as tentativas de normalização das relações EUA-Cuba, durante os períodos presidenciais de Gerald Ford (1974-1977) e Jimmy Carter (1911-1981).
Autor: Piero Gleijeses | internet@granma.cu
março 31, 2016
12:03:24
Em certa ocasião, o presidente Raúl Castro disse que “fomos capazes de
fazer a história, mas incapazes de a escrever”. O excelente livro de Elier
Ramirez e de Esteban Morales De la confrontación a los
intentos de ‘normalización’ (Do confronto às tentativas de
‘normalização"’ (editora Ciencias Sociales, 2014) é um passo importante
para preencher esta lacuna.
O livro, baseado em um domínio das fontes secundárias estadunidenses e
cubanas, bem como uma rica amostra de documentos norte-americanos e também — o
que é uma revelação — de inúmeros documentos cubanos, examina as tentativas de
normalização das relações entre os dois países, durante as etapas presidenciais
de Gerald Ford (1974-1977) e Jimmy Carter (1977-1981). Ambos são os únicos
episódios — antes de Obama — em que houve uma tentativa séria para normalizar
as relações entre os dois países. Também houve um surto de intenções na época
de Kennedy, que Ramirez e Morales descrevem no primeiro capítulo do livro.
Tanto na época de Ford quanto na de Carter, a África foi, como explicam
muito bem os autores, “o obstáculo intransponível”, que impediu a normalização
entre os Estados Unidos e Cuba. As negociações estavam avançando em 1975,
quando as tropas cubanas chegaram a Angola, em desafio à URSS, que era contra;
desafiando a África do Sul, que tinha invadido Angola e cujas tropas estavam se
aproximando de Luanda; e desafiando os EUA, que estavam em um conluio lascivo
com Pretória.
Fidel decidiu intervir porque ele sabia que a vitória do Eixo do Mal —
Washington e Pretoria — teria significado a vitória do apartheid e o
fortalecimento do domínio branco sobre os povos da África Austral. Quinze anos
mais tarde, em uma manifestação de honestidade incomum, Henry Kissinger, secretário
de Estado dos EUA em 1975, reconheceu no último volume de suas memórias que
Cuba tinha agido por sua própria iniciativa, informando à URSS acerca de um
fato consumado. “Fidel, disse Kissinger, era, talvez, o líder revolucionário no
poder mais genuíno naquele momento”.
Cuba salvou Angola e os Estados Unidos retaliaram interrompendo as
conversações sobre a normalização das relações. Depois, estas foram retomadas
por Carter. Ramírez e Morales descrevem essas conversações entre as autoridades
americanas e cubanas, em 1977-1978, de uma maneira qualificada e profunda,
lançando mão de documentos, tanto cubanos quanto norte-americanos, um fato
excepcional que nenhum outro historiador dessas conversações tenha conseguido,
incluindo o autor destas linhas.
Mais uma vez, a África revelou-se o “obstáculo insuperável”. No final de
1977, as tropas cubanas chegaram à Etiópia para ajudar a derrotar a invasão da
Somália. O que aconteceu parece coisa de ficção: a administração Carter
castigou Cuba porque tinha enviado tropas para deter um agressor que tentou
desmembrar a Etiópia, violando grosseiramente todas as normas de direito
internacional. No entanto, tal como a historiadora Nancy Mitchell demonstra em
um livro magistral que foi publicado em Cuba, o próprio Carter, aquele
presidente ”bom”, havia encorajado a agressão da Somália contra a Etiópia por
causa de um cálculo cínico, enraizado na mentalidade da guerra fria: os Estados
Unidos haviam perdido a aliança com a Etiópia, cujo governo simpatizava com o
bloco socialista e, portanto, tinham que buscar uma aliança com a Somália. A
maneira de fazer isso foi ajudar o presidente da Somália, Siad Barre, em seus
afãs de agressão. Anos mais tarde, o mesmo Carter disse a Nancy Mitchell:
“Moralmente nós escolhemos o lado errado porque apoiamos Siad Barre, que
invadiu a Etiópia”. (Nancy Mitchell gravou a conversa com Carter, que durou
mais de duas horas, e eu tive o privilégio de ouvir a gravação).
Porém, mais do que a Etiópia, o obstáculo insuperável foi Angola. Carter
exigia que as tropas cubanas saíssem de lá. Até mesmo a CIA reconheceu que a
presença das tropas cubanas “era necessária para preservar a independência de
Angola”, ameaçada pela África do Sul do apartheid, mas isso não foi suficiente
para satisfazer a arrogância imperial de Washington. Os Estados Unidos, que
mantinham centenas de milhares de soldados nos países da Europa Ocidental para
defendê-los contra uma muito teórica ameaça soviética, não permitiam que Angola
tivesse tropas cubanas para se defender de uma ameaça sul-africana muito real.
Como bem disse Fidel a dois enviados de Carter, em dezembro de 1978, “parecia
que os Estados Unidos querem dizer que existem duas leis, dois conjuntos de
regras e dois tipos de lógica; uma para os Estados Unidos e outra para os restantes
países”, uma triste verdade que começa a partir dos tempos de Thomas Jefferson
e continua até hoje.
Cuba rejeitou a chantagem de Carter que punha como condição para a
normalização a retirada das tropas cubanas de Angola. As pressões de Carter não
fariam mudar “a posição firme e categórica de Cuba”, disse ao presidente
Agostinho Neto, Jorge Risquet, o homem de confiança de Fidel em Angola. “A
presença cubana em Angola é uma questão que só compete a ambos os países e não
está sujeita a qualquer negociação entre Cuba e os Estados Unidos”. Quando eu
leio estas palavras eu não posso deixar de pensar na enorme dívida do povo
angolano e seu governo com Cuba. Eu também penso em Risquet, que sempre me
insistiu em que a política em relação a Angola era pensada por Fidel e Raul,
ele estava apenas cumprindo suas instruções. Mas mesmo uma grande política
precisa de homens que a saibam executar no terreno. Para isso existiam homens
como Polo Cintra Frias, no âmbito militar e Risquet, no político. Aliás, eu
também gostaria de fazer uma reflexão pessoal: Risquet foi meu irmão. Durante
mais de duas décadas pude admirar a sabedoria, a inteligência e a honestidade
deste magnífico revolucionário, muito comprometido com a causa e a seus
líderes: Fidel e Raul Castro.
O livro de Ramírez e Morales é um dos trabalhos mais importantes sobre a
política externa da Revolução cubana que já foi publicado nas últimas décadas
em Cuba e fora de Cuba. Os autores nos dão magistralmente uma prova irrefutável
da nobreza e a generosidade da política exterior cubana. Sua análise é clara,
rigorosa e baseada nos fatos.
*Piero Gleijeses é membro correspondente estrangeiro da Academia de
História de Cuba e professor de política externa dos EUA, na Universidade Johns
Hopkins, em Washington.
Fonte: Granma online